Cristina olhou o relógio, ainda faltava muito para o término da aula. Pensou nisso com extensa sofreguidão como se sua vida fosse acabar antes que pudesse articular o pensamento seguinte. Respirava com dificuldade, fruto do cansaço e de um resfriado. Na verdade vivia á algum tempo em dificuldade. A timidez a ameaçava sempre feroz, e muitas vezes lhe condicionava as reações. Não temia as pessoas, mas sim o mecanismo obscuro que sorrateiramente trabalhava em seu corpo fustigado pela magreza e que a fazia sofrer. E ele não o fazia por uma questão de autopreservação, instinto bruto de sobrevivência, longe disso, fazia-o para castigá-la, para sentir o frêmito de vergonha que a ruborizava e as contrações estomacais que invariavelmente acabavam em diarréia. Porque ele - o mecanismo - julgava-se tão mais importante do que ela, o verdadeiro dono daquilo que ela, em matéria e espírito, sentia ao comer, dormir ou trepar, ainda que apenas se masturbasse ou suasse frio em privação. Por sua vez, paradoxalmente, ela o sentia como parte íntima de si mesma e como unidade distinta e autônoma, dotado de força maior que a sua. O mecanismo fora acalentado anos a fio, provavelmente como uma forma de punir-se, ou sistema de defesa, ou nem uma coisa nem outra. Era sua obscuridade misteriosa e sem propósito que a assolava, sua intimidade tão familiar e acolhedora que a aprisionava naquele vórtice cruel de vergonha e desamparo.
Quando o jovem colega, sentado a classe vizinha, na verdade uma mesa fazia ás vezes de trincheira entre ambos, tocou-lhe o braço e estendeu a mão segurando uma barra de chocolate pela metade, sentiu os maxilares se deslocando, arrastando os dentes uns contra os outros. Os músculos da face se contraíram deformando aquilo que deveria ser um sorriso. Entorpecida pelo sono que lhe caía sobre os ombros, acumulado de meses inteiros dormindo tarde da noite e acordando na primeira hora da manhã, Cristina mal conseguia perceber o que ocorria ao redor; seus colegas, calados e tristes, apagavam os olhos e escorriam das cadeiras lentamente até o chão, aninhando-se como roupa gasta e suja. O chocolate ali parado naquela mão enorme e um tanto intransigente, pois que não se movia e mantinha-se fixa estendendo a barra marrom enrolado em papel alumínio, exigindo uma resposta, mostrando-lhe que não podia ser ignorada, ainda que pudesse se travestir de outras coisas, de ofensas ou monstruosidades. A mão severa, como se tomada de chocolate, dedo por dedo, longas barras de unhas molengas. Um calafrio percorreu-lhe o corpo debilitado. Não foi que tivesse sentido fome ou desejado a morte daquele rapaz, ou a sua própria, foi o esgotamento, um instinto cego e mecânico. A boca encheu-se de sangue, dedos e chocolate. Mastigou-os tomada de vontade e desejo, como se trepasse com eles. O jovem foi transpassado por uma dor muda. Contorcia-se ao chão com a boca escancarada, de lá, porém, nenhum som escapava. Com a destra segurava a mão mutilada enquanto o sangue lhe escorria vertiginoso pelo braço. A professora não percebera o que acabara de ocorrer ou, pior, dava a impressão de não estranhar o incidente. Talvez não o tivesse registrado no cérebro. Cristina levou a mão à boca a fim de que nenhum naco lhe escapasse. Mastigava-os com incontido prazer. O rosto, antes pálido, foi se banhando de uma luz avermelhada. Ajoelhou-se ao lado do colega afônico e pôs-se a comê-lo, primeiro o restante da mão, depois o braço e o peito. A essa altura a professora havia parado a aula e repreendia os alunos que não cessavam de escorrem das cadeiras.