Existe no centro da cidade, numa rua pequena de prédios cor de chumbo, um café que permanece intocado pelo tempo. Desde que o conheço é o mesmo, o balcão marrom com a barra dourada para apoiar os pés, os espelhos laterais próximos das mesas de mármore, os cinzeiros de vidro transparente. Lá no fundo a escada em caracol que leva aos banheiros. Desconfio que seja o único – o último – lugar em toda a Porto Alegre onde ainda se pode fumar. Nunca fumei, mas quando venho aqui tenho vontade de fazê-lo e de me transformar num desses velhos de colete de lã, camisa xadrez e calça de linho. Eles formam o que eu chamo de assembléia dos anciãos da aldeia. Fumam e bebem café preto enquanto manuseiam o destino da humanidade como hábeis titereiros que são. Decidem se os planos e desejos dos homens se realizarão ou se tudo não passará de quimeras. Se a mulher de cabelos loiros, ainda molhados do banho, que caminha apressada levando a bolsa prensada contra o corpo, chegará ao serviço a tempo de evitar a segunda advertência no mês, ou se o chefe dela ficará preso no cruzamento entre a Rua Borges de Medeiros e a Avenida Ipiranga, devido ao acidente que ocorrerá se o caminhão de gás, que trafega na outra mão da avenida, esticar a velocidade de modo a pegar o último vapor de sinal amarelo, antes que ele se torne vermelho, e o menino de mochila preta, moletom e capuz na cabeça, coloque um dos pés, como é destro por instinto será esse, na listra branca da faixa de segurança. Talvez ele nem pense nisso, se devia ou não esperar os carros pararem em definitivo, porque a música que escuta no fone de ouvido é tão perfeita que tem o poder de fazê-lo sentir-se como se estivesse num filme e tudo a sua volta é inofensivo, que todos – o jornaleiro, os pedestres, os motoristas – também são atores e como ele sabem de antemão o que devem fazer. Talvez um pressentimento, uma sacudidela nos fios que o prendem, o faça parar e não prosseguir. A verdade é que ninguém sabe o que os velhos tramam, nem os motivos. Velhos demiurgos aposentados.
Adoro vir aqui e tragar esse aroma de café e cigarro. O valor do expresso é justo e o copo de água mineral com gás é por conta da casa. As garçonetes são mulheres de meia-idade, simpáticas, donas de corpos que ainda exalam vitalidade, conforme o gosto da freguesia. A atendente do caixa é a mais jovem, uma balzaquiana de cabelos negros, olhos fulgurantes que me consomem como fogo em papel. Tenho vontade de convidá-la para sentar e tomar um café, mas confesso que a cantada está longe de ser original, ainda que honesta.
Os velhos não temem o tempo, aqui ele não os alcança, perde seu efeito ferruginoso. Sinto-me confortável entre eles. Imagino que me aceitam porque sabem que eu partilho de seus segredos e que venho observá-los porque um dia assumirei uma dessas cadeiras ou, talvez, eu já esteja aqui há tanto tempo que nem percebi. Talvez um outro eu ande por aí, prisioneiro das horas, correndo de um lado para o outro, tentando valer-se de algum indício de realidade. Talvez um dia ele passe em frente ao Ancien e imagino que não ficará surpreso ao me encontrar, pois o fato é que tem me procurado desde sempre. Os anciãos o conduzirão até a minha mesa e eu lhe pagarei um expresso á moda da casa.
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