Objetivo

Este blog tem por finalidade reunir criações literárias de escritores independentes. O grupo que aqui se apresenta teve início com a Oficina Literária ministrada por Diego Petrarca, mas esta aberta a outros que por ventura quiserem ter seus textos publicados.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Digite o Título Aqui

Letra por letra, palavra por palavra, frase por frase, parágrafo a parágrafo, uma ideia sobre outra, entre outra, junto com outra, entra dentro de outra, uma ideia odeia a outra, outra ama a outra ideia, vírgulas, pontos, e vírgulas, interrogações, interjeições e exclamação, reticências, pensamento não reticente…

(Rafael Calçada)

"Linearidade".

Aqui escreveram mãos de alguém com pensamentos lineares, lineares tangentes a outros pensamentos circulares; pensamentos lineares dado que são em linha, mas lineares curvos. Opa! Pensamentos lineares não-tangentes – tangentes não são curvas… pensamentos que são curvas secantes à pensamentos circulares. Raros pensamentos lineares retos, raras funções afim. Raras também as curvas tangentes. Opa! Errei novamete… pensamentos lineares curvos poderão tanger pensamentos circulares, embora isto seja mais raro que funções afim e curvas que tangem.
 
(Rafael Calçada)

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

O Mecanismo


 
Cristina olhou o relógio, ainda faltava muito para o término da aula. Pensou nisso com extensa sofreguidão como se sua vida fosse acabar antes que pudesse articular o pensamento seguinte. Respirava com dificuldade, fruto do cansaço e de um resfriado. Na verdade vivia á algum tempo em dificuldade.  A timidez a ameaçava sempre feroz, e muitas vezes lhe condicionava as reações. Não temia as pessoas, mas sim o mecanismo obscuro que sorrateiramente trabalhava em seu corpo fustigado pela magreza e que a fazia sofrer. E ele não o fazia por uma questão de autopreservação, instinto bruto de sobrevivência, longe disso, fazia-o para castigá-la, para sentir o frêmito de vergonha que a ruborizava e as contrações estomacais que invariavelmente acabavam em diarréia. Porque ele - o mecanismo - julgava-se tão mais importante do que ela, o verdadeiro dono daquilo que ela, em matéria e espírito, sentia ao comer, dormir ou trepar, ainda que apenas se masturbasse ou suasse frio em privação.  Por sua vez, paradoxalmente, ela o sentia como parte íntima de si mesma e como unidade distinta e autônoma, dotado de força maior que a sua. O mecanismo fora acalentado anos a fio, provavelmente como uma forma de punir-se, ou sistema de defesa, ou nem uma coisa nem outra. Era sua obscuridade misteriosa e sem propósito que a assolava, sua intimidade tão familiar e acolhedora que a aprisionava naquele vórtice cruel de vergonha e desamparo.
Quando o jovem colega, sentado a classe vizinha, na verdade uma mesa fazia ás vezes de trincheira entre ambos, tocou-lhe o braço e estendeu a mão segurando uma barra de chocolate pela metade, sentiu os maxilares se deslocando, arrastando os dentes uns contra os outros. Os músculos da face se contraíram deformando aquilo que deveria ser um sorriso. Entorpecida pelo sono que lhe caía sobre os ombros, acumulado de meses inteiros dormindo tarde da noite e acordando na primeira hora da manhã, Cristina mal conseguia perceber o que ocorria ao redor; seus colegas, calados e tristes, apagavam os olhos e escorriam das cadeiras lentamente até o chão, aninhando-se como roupa gasta e suja. O chocolate ali parado naquela mão enorme e um tanto intransigente, pois que não se movia e mantinha-se fixa estendendo a barra marrom enrolado em papel alumínio, exigindo uma resposta, mostrando-lhe que não podia ser ignorada, ainda que pudesse se travestir de outras coisas, de ofensas ou monstruosidades. A mão severa, como se tomada de chocolate, dedo por dedo, longas barras de unhas molengas. Um calafrio percorreu-lhe o corpo debilitado. Não foi que tivesse sentido fome ou desejado a morte daquele rapaz, ou a sua própria, foi o esgotamento, um instinto cego e mecânico. A boca encheu-se de sangue, dedos e chocolate. Mastigou-os tomada de vontade e desejo, como se trepasse com eles. O jovem foi transpassado por uma dor muda. Contorcia-se ao chão com a boca escancarada, de lá, porém, nenhum som escapava. Com a destra segurava a mão mutilada enquanto o sangue lhe escorria vertiginoso pelo braço. A professora não percebera o que acabara de ocorrer ou, pior, dava a impressão de não estranhar o incidente. Talvez não o tivesse registrado no cérebro. Cristina levou a mão à boca a fim de que nenhum naco lhe escapasse.  Mastigava-os com incontido prazer. O rosto, antes pálido, foi se banhando de uma luz avermelhada. Ajoelhou-se ao lado do colega afônico e pôs-se a comê-lo, primeiro o restante da mão, depois o braço e o peito. A essa altura a professora havia parado a aula e repreendia os alunos que não cessavam de escorrem das cadeiras.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

sábado, 17 de setembro de 2011

Do embaraço do Traço

A mão treme o traço o traço treme a linha a linha rasga papel papel conta história traçada pela linha que treme a mão acariciando a mania de por o pé no chão embaraçando o traço volto aos pés descalços sob o motivo da linha do embaraço do traço__________________

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Café Ancien



Existe no centro da cidade, numa rua pequena de prédios cor de chumbo, um café que permanece intocado pelo tempo. Desde que o conheço é o mesmo, o balcão marrom com a barra dourada para apoiar os pés, os espelhos laterais próximos das mesas de mármore, os cinzeiros de vidro transparente. Lá no fundo a escada em caracol que leva aos banheiros. Desconfio que seja o único – o último – lugar em toda a Porto Alegre onde ainda se pode fumar. Nunca fumei, mas quando venho aqui tenho vontade de fazê-lo e de me transformar num desses velhos de colete de lã, camisa xadrez e calça de linho. Eles formam o que eu chamo de assembléia dos anciãos da aldeia. Fumam e bebem café preto enquanto manuseiam o destino da humanidade como hábeis titereiros que são. Decidem se os planos e desejos dos homens se realizarão ou se tudo não passará de quimeras. Se a mulher de cabelos loiros, ainda molhados do banho, que caminha apressada levando a bolsa prensada contra o corpo, chegará ao serviço a tempo de evitar a segunda advertência no mês, ou se o chefe dela ficará preso no cruzamento entre a Rua Borges de Medeiros e a Avenida Ipiranga, devido ao acidente que ocorrerá se o caminhão de gás, que trafega na outra mão da avenida, esticar a velocidade de modo a pegar o último vapor de sinal amarelo, antes que ele se torne vermelho, e o menino de mochila preta, moletom e capuz na cabeça, coloque um dos pés, como é destro por instinto será esse, na listra branca da faixa de segurança. Talvez ele nem pense nisso, se devia ou não esperar os carros pararem em definitivo, porque a música que escuta no fone de ouvido é tão perfeita que tem o poder de fazê-lo sentir-se como se estivesse num filme e tudo a sua volta é inofensivo, que todos – o jornaleiro, os pedestres, os motoristas – também são atores e como ele sabem de antemão o que devem fazer. Talvez um pressentimento, uma sacudidela nos fios que o prendem, o faça parar e não prosseguir. A verdade é que ninguém sabe o que os velhos tramam, nem os motivos. Velhos demiurgos aposentados.
Adoro vir aqui e tragar esse aroma de café e cigarro. O valor do expresso é justo e o copo de água mineral com gás é por conta da casa. As garçonetes são mulheres de meia-idade, simpáticas, donas de corpos que ainda exalam vitalidade, conforme o gosto da freguesia. A atendente do caixa é a mais jovem, uma balzaquiana de cabelos negros, olhos fulgurantes que me consomem como fogo em papel. Tenho vontade de convidá-la para sentar e tomar um café, mas confesso que a cantada está longe de ser original, ainda que honesta.
Os velhos não temem o tempo, aqui ele não os alcança, perde seu efeito ferruginoso. Sinto-me confortável entre eles. Imagino que me aceitam porque sabem que eu partilho de seus segredos e que venho observá-los porque um dia assumirei uma dessas cadeiras ou, talvez, eu já esteja aqui há tanto tempo que nem percebi. Talvez um outro eu ande por aí, prisioneiro das horas, correndo de um lado para o outro, tentando valer-se de algum indício de realidade. Talvez um dia ele passe em frente ao Ancien e imagino que não ficará surpreso ao me encontrar, pois o fato é que tem me procurado desde sempre. Os anciãos o conduzirão até a minha mesa e eu lhe pagarei um expresso á moda da casa.


Café Ancien


Existe no centro da cidade, numa rua pequena de prédios cor de chumbo, um café que permanece intocado pelo tempo. Desde que o conheço é o mesmo, o balcão marrom com a barra dourada para apoiar os pés, os espelhos laterais próximos das mesas de mármore, os cinzeiros de vidro transparente. Lá no fundo a escada em caracol que leva aos banheiros. Desconfio que seja o único – o último – lugar em toda a Porto Alegre onde ainda se pode fumar. Nunca fumei, mas quando venho aqui tenho vontade de fazê-lo e de me transformar num desses velhos de colete de lã, camisa xadrez e calça de linho. Eles formam o que eu chamo de assembléia dos anciãos da aldeia. Fumam e bebem café preto enquanto manuseiam o destino da humanidade como hábeis titereiros que são. Decidem se os planos e desejos dos homens se realizarão ou se tudo não passará de quimeras. Se a mulher de cabelos loiros, ainda molhados do banho, que caminha apressada levando a bolsa prensada contra o corpo, chegará ao serviço a tempo de evitar a segunda advertência no mês, ou se o chefe dela ficará preso no cruzamento entre a Rua Borges de Medeiros e a Avenida Ipiranga, devido ao acidente que ocorrerá se o caminhão de gás, que trafega na outra mão da avenida, esticar a velocidade de modo a pegar o último vapor de sinal amarelo, antes que ele se torne vermelho, e o menino de mochila preta, moletom e capuz na cabeça, coloque um dos pés, como é destro por instinto será esse, na listra branca da faixa de segurança. Talvez ele nem pense nisso, se devia ou não esperar os carros pararem em definitivo, porque a música que escuta no fone de ouvido é tão perfeita que tem o poder de fazê-lo sentir-se como se estivesse num filme e tudo a sua volta é inofensivo, que todos – o jornaleiro, os pedestres, os motoristas – também são atores e como ele sabem de antemão o que devem fazer. Talvez um pressentimento, uma sacudidela nos fios que o prendem, o faça parar e não prosseguir. A verdade é que ninguém sabe o que os velhos tramam, nem os motivos. Velhos demiurgos aposentados.
Adoro vir aqui e tragar esse aroma de café e cigarro. O valor do expresso é justo e o copo de água mineral com gás é por conta da casa. As garçonetes são mulheres de meia-idade, simpáticas, donas de corpos que ainda exalam vitalidade, conforme o gosto da freguesia. A atendente do caixa é a mais jovem, uma balzaquiana de cabelos negros, olhos fulgurantes que me consomem como fogo em papel. Tenho vontade de convidá-la para sentar e tomar um café, mas confesso que a cantada está longe de ser original, ainda que honesta.
Os velhos não temem o tempo, aqui ele não os alcança, perde seu efeito ferruginoso. Sinto-me confortável entre eles. Imagino que me aceitam porque sabem que eu partilho de seus segredos e que venho observá-los porque um dia assumirei uma dessas cadeiras ou, talvez, eu já esteja aqui há tanto tempo que nem percebi. Talvez um outro eu ande por aí, prisioneiro das horas, correndo de um lado para o outro, tentando valer-se de algum indício de realidade. Talvez um dia ele passe em frente ao Ancien e imagino que não ficará surpreso ao me encontrar, pois o fato é que tem me procurado desde sempre. Os anciãos o conduzirão até a minha mesa e eu lhe pagarei um expresso á moda da casa.